sábado, 2 de outubro de 2021

Do Amor e das Infidelidades no Portugal do Século XVIII (Segunda Parte)

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(Continuação de 29-Setembro-2021 - aqui)


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“Mas – coisa curiosa ! – o português, que tinha ciúmes de toda a gente, ciúmes de tudo o que o rodeava, ciúmes dum candeeiro, ciúmes dum cão de fralda, ciúmes dum papel de  solfa, ciúmes dum pé de vento —, só não era cioso da maior peste que lhe entrava em casa: o frade.

Para a luz do dia — rótulas [gelosias] fechadas.
Para o frade — portas abertas.

É Montesquieu que o diz: O português e o espanhol não são capazes de deixar a mulher sozinha, durante meia hora, com um velho de oitenta anos; mas consentem da melhor vontade que ela se feche no quarto, o dia inteiro, com o franciscano robusto que a confessa.



E o autor desconhecido da Description de la ville de Lisbonne, publicada em Paris em 1738, acrescenta: As mulheres portuguesas não têm licença para falar senão com frades; fora disso, entretêm-se em casa, por dentro das gelosias, a olhar quem passa na rua.

Era o frade que as ensinava a ler; era o frade que as consolava; era o frade que lhes levava as indulgências e as folhinhas de Lausperenes; era o frade que cantava com elas motetes à viola, que lhes dobava nos braços as meadas de seda, que lhes levava na manga do hábito as cartas de amor; era o frade, sempre o frade, que a cólera dos maridos ou a vara de prata dos alcaides encontrava invariavelmente, sofraldando o chiote, chocalhando as camândulas, resmungando o breviário, no fundo de todos os dramas domésticos e de todas as intrigas de alcova.


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Foi um frade capucho que facilitou, em 1724, a fuga para Tuy do marquês de Gouveia, D. João, com a mulher de D. Lourenço de Lencastre; foi por causa dum frade que, em 5 de Dezembro de 1733, o fidalgo Luís Álvares de Andrade mandou matar por um mulato a mulher, D. Micaela Joana; foi com um frade trino, frei André Guilherme, que o cirurgião Isaac Elliot surpreendeu a mulher sobre um espreguiçadeiro de damasco, matando-os a ambos com as facas do ofício e com tiros de pistola em 26 de Novembro de 1731.

Sempre que numa alcova do século XVIII se levantava o cortinado dum leito, era a face sanguínea, a face bestial do frade que surgia, entre potes de prata, encapuzada na testeira negra do capelo, as avarcas às costas, o olho felpudo piscando, como um diabo de iluminura pendurado nas letras de oiro dum antifonário.

Por que é que os frades de Bouro
Fazem tanto casamento
É para haver moças casadas
Que os vão catar ao convento...
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O cuco nobre, o cuco fidalgo, o cuco que se esquartelava a esmaltes e metais no tecto doirado da Sala dos Veados —, vingava-se, assassinando.

Ou, melhor ainda, mandava matar a mulher por um negro ou por um mulato.

Calderón de la Barca, no Medico de su Honra, tinha ditado a lei da nobreza: la sangraré!
Foi o tue la! [mata-a!] do século XVIII.

Matava-se por simples denúncia, por mera suspeita.

Os maridos portugueses, conhecendo a extrema fraqueza das mulheres que Deus lhes deu — diz ainda o duque do Châtelet — nunca as largam, fecham-nas em casa, correm-lhes as rótulas, vigiam-nas dia e noite, e se encontram vivalma que desperte suspeitas, cravam-lhe no coração a faca que trazem sempre consigo.



Mas a lei não dava ao marido o direito de matar; era ela que punia.

Cucos e recucos, chiscismelros e ribeirinhos, tinham o seu caso previsto no Livro 5.° das Ordenações e no alvará de 26 de Setembro de 1769.

Se o marido acusava — adúltero e adúltera sofriam morte natural, com perda dos bens para o marido e filhos;

se o marido não acusava — degredo dos dois para Angola por dez anos;

se o marido perdoava à mulher — degredo perpétuo do adúltero para o Maranhão;

se o marido consentia — degredo perpétuo dos três: o adúltero para Angola, marido e mulher para o Brasil...

E tudo isto, porquê?

É Maria de Riva que o responde, na Veneza do século XVIII, ao embaixador de França, conde de Froullay:

Porque os maridos não sabem amar..."




La Donna è Mobile (Verdi):


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Fonte: Júlio Dantas, O Amor em Portugal no Século XVIII, Livraria Chardron, Porto, Portugal, ano de 1916, págs. 218-221

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