sábado, 20 de novembro de 2021

O Conselheiro Acácio (de Eça de Queiroz) - que ainda se mantém por aí...








Conselheiro Acácio é uma das personagens da obra O Primo Basílio, de Eça de Queiroz (Portugal).

Esta figura fictícia tornou-se célebre como representação da convencionalidade e da mediocridade dos políticos e burocratas portugueses dos finais do século XIX.

É ainda utilizada para designar a pompa balofa e a postura de pseudo-intelectualidade de muitas figuras públicas.

Deu origem ao termo acaciano, designativo de tais figuras e ditos.

Eis como Eça de Queiroz o descreveu (no seu romance O Primo Basílio):

………….

"Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que duma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca - e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.

Fora, outrora, director-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia El-rei! erguia-se um pouco na cadeira.
Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé.
Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir.
Dizia sempre "o nosso Garrett, o nosso Herculano".
Citava muito.
Era autor.
E sem família, num terceiro andar da rua do Ferragial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política; tinha composto os Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e Sua Distribuição, segundo os melhores autores, e como subtítulo: Leituras do serão!

Havia apenas meses publicara a Relação de Todos os Ministros D'Estado Desde o Grande Marquês de Pombal Até Nossos Dias, Com Datas Cuidadosamente Averiguadas de Seus Nascimentos e Óbitos.

- Já esteve no Alentejo, conselheiro? - perguntou-lhe Luísa.
- Nunca, minha senhora - e curvou-se. - Nunca! E tenho pena, sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.

Tomou uma pitada de uma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
- De resto, país de grande riqueza suína!
- Ó Jorge, averigua quanto é o partido da Câmara em Évora - disse Julião do canto do sofá.

O conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:
- Devem ser seiscentos mil réis, senhor Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Porquê, senhor Zuzarte, quer deixar Lisboa?
- Talvez!...

Todos desaprovaram.

- Ah! Lisboa sempre é Lisboa! - suspirou Dona Felicidade.
- Cidade de mármore e de granito, na frase sublime do nosso grande historiador! - disse solenemente o conselheiro.

E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.

Dona Felicidade disse então:
- Quem não era capaz de deixar Lisboa, nem à mão de Deus Padre, era o conselheiro!

O conselheiro, voltando-se vagarosamente para ela, um pouco curvado, replicou:
- Nasci em Lisboa, Dona Felicidade, sou lisboeta d'alma!
- O conselheiro - lembrou Jorge - nasceu na rua de S. José.
- Número setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada àquela em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!

Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Acácio fora seu íntimo. Eram vizinhos. Acácio tocava então rabeca, e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo à Filarmónica da rua de S. José.

Depois Acácio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrúpulo e por dignidade, abandonou a rabeca, os sentimentos ternos, os serões joviais da Filarmónica. Entregou-se todo à estatística. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquela amizade vigilante; fora padrinho do seu casamento, vinha vê-lo todos os domingos, e, no dia de seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia de ovos.

- Aqui nasci - repetiu, desdobrando o seu belo lenço da Índia - e aqui conto morrer.

E assoou-se discretamente.

- Isso ainda vem longe, conselheiro!

Ele disse, com uma melancolia grave:
- Não me arreceio dela, meu Jorge. Até já fiz construir, sem vacilar, no Alto de S. João, a minha última morada. Modesta, mas decente. É ao entrar, no arruamento à direita, num lugar abrigado, ao pé da choça dos Veríssimos amigos.

- E já compôs o seu epitáfio, senhor conselheiro? - perguntou Julião, do canto, irónico.

- Não o quero, senhor Zuzarte. Na minha sepultura não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patrícios entenderem que eu fiz alguns serviços, têm outros meios para os comemorar; já têm a imprensa, o comunicado, o necrológio, a poesia mesmo! Por minha vontade quero apenas sobre a lápide lisa, em letras negras, o meu nome - com a minha designação de conselheiro - a data do meu nascimento e a data do meu óbito.

E com um tom demorado, de reflexão:
- Não me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores: Orai por ele!"

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Eça de Queiroz, O Primo Bazílio, 2.ª edição, Livraria Internacional, Porto, Portugal, ano de 1878 (págs. 48-51).
(Actualização ortográfica da responsabilidade da Torre).

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