quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O caso Dreyfus - ou a incómoda probabilidade da inocência: "J'accuse..."


"Há 111 anos, a 13 de Janeiro de 1898, foi publicada a mais grandiosa peça jornalística de todos os tempos. Escrita como carta aberta ao presidente de França, é um apelo indignado em nome de um inocente injustamente condenado, libelo contra um sistema judicial corrupto e uma opinião pública contaminada pela manipulação da verdade e pelos seus preconceitos (o condenado era judeu) através de uma campanha mediática "abominável".

Num estilo que cruza o jornalismo e o manifesto, descreve a forma como um homem foi desonrado, julgado e condenado a prisão perpétua com base em provas falsas que, sendo consideradas "secretas", nem sequer lhe foram reveladas, e demonstra como o verdadeiro culpado foi absolvido por juízes cientes da sua culpa.
Tem como título J'accuse...! (Eu acuso...!), e é uma defesa empolgada e empolgante da verdade e da justiça.


O seu autor, Émile Zola, sabia ao escrever o risco que corria - aliás, escreveu jogando nesse risco, o de ser acusado de desrespeito e difamação e de poder fazer no seu julgamento a demonstração do que afirmava.
Zola conseguiu o que queria: virar a França a favor do inocente condenado (Dreyfus) - mesmo se à custa de reacções violentas contra ele e contra Dreyfus, incluindo motins anti-judaicos - e reabrir o respectivo processo, mas também ser julgado, três escassas semanas após a publicação do artigo.
Foi condenado à pena máxima no caso, um ano de cadeia, a que escapou fugindo para o estrangeiro.



Zola voltaria a França para assistir à reabertura do processo Dreyfus, no qual este foi, incrivelmente, condenado de novo. Seria no entanto "perdoado" e acabaria ilibado em 1906, reintegrado e promovido no exército que o expulsara.
Zola, arruinado pela defesa de Dreyfus, tinha morrido há quatro anos, sem ver satisfeita a sua exigência de justiça.
Na verdade, a justiça nunca foi realmente feita: ninguém - nem os oficiais do exército que cozinharam a sua "culpa", nem os juízes e procuradores que o condenaram sonegando-lhe as provas, nem aqueles que a propagaram sem se esforçarem por conhecer a verdade - foi julgado pelo martírio de Dreyfus.



As forças contra as quais Zola se ergueu, "fraco e desarmado" (como disse Anatole France no seu elogio fúnebre), nunca foram derrotadas - apenas o necessário para, naquele caso, lavarem a face, revendo a decisão que condenara um inocente.
Fraco consolo.
O caso Dreyfus, como muitos outros antes e depois dele, mostra o lado negro do poder do sistema judicial.
Quando um sistema criado para certificar a procura e o triunfo da verdade despreza a verdade e funciona como se estivesse acima das leis por cujo cumprimento lhe cumpre zelar, instrumentalizando o extraordinário poder que lhe é conferido, não há Estado de Direito.

Sem Estado de Direito, não há grande chance para a democracia, até porque não há para aí Zolas aos pontapés.
O que há aos pontapés é gente que, quiçá imaginando-se da estirpe do autor de J'accuse, se compraz em funcionar como guarda avançada dessa instrumentalização da verdade.
"O meu dever é falar, não quero ser cúmplice", escreveu Zola.
É sempre boa altura para lhe honrar o repto." (*)

(*) Fernanda Câncio - Diário de Notícias, Lisboa, Portugal - 30-Janeiro-2009

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