sábado, 13 de setembro de 2008

Faltam Estado e Paixão a Portugal (Baptista-Bastos)



A prosa narrativa portuguesa é, hoje, uma debilidade em forma de substantivo inócuo, o modo superior de o escritor se não comprometer com coisa alguma, exceptuando o seu imensíssimo umbigo.
A política, tal como é exercida em Portugal, abandonou a ideia de espírito de missão, e tornou-se num generosíssimo meio de se governar a vidinha.
Sinto uma profunda repulsa por esta gente.
Ouvimo-la, vemo-la, assistimo-la e percebemos que está ausente de paixão.
Falha de coragem, gananciosa e sem escrúpulos, diz umas coisas por dizer, removidas quaisquer ideias de progresso, isentas de padrões e de princípios.
Resignámo-nos e acabámos por aceitá-la, sem força nem ânimo para a combater até à sua desaparição.

Aquela coisa desenxabida que foi a Universidade de Verão do PSD tem alguma razão prática de ser, que não um concentrado de narcisistas, cujas "lições" possuem a dimensão de uma melancólica insensatez?
E esta, agora, da "Res Publica", com que o PS pretende suscitar "polémica e refrescar o pensamento"?
Que pensamento?
Não há pensamento político português, se assim me posso exprimir.
A prática política está inteiramente subordinada à economia, e os grandes interesses desenvolveram, potencialmente, uma espécie particular de niilismo cujos resultados, já de si inquietantes, serão, inevitavelmente, e a curto prazo, fatais.

Nem o PS nem o PSD possuem bases teóricas reconhecidas e respeitadas.
Seguem a onda neoliberal, consentindo que a nossa vida não tenha lustro nem alegria nem perspectivas. Digam o que têm dito alguns preopinantes, as diferenças "ideológicas" entre aqueles dois partidos não são separáveis.
E a sua praxis deriva consoante as idiossincrasias pessoais dos seus dirigentes: mais ou menos populistas, mais ou menos retóricos, familiarizaram-se em actuar num espaço associado à "economia de mercado", que converteu o absurdo numa condenação necessária.
O estribilho "Menos Estado, Melhor Estado" entrou nos domínios do religioso.
E a falência dramática do projecto arrastou consigo um rio de desespero, de angústia, de fome, de desemprego e de miséria, ao mesmo tempo que criava o pressuposto de que não havia alternativa.

O começo de uma nova disponibilidade está a recuperar as esperanças.
Os acontecimentos na América Latina surgem como um possível compromisso entre Estado e sociedade, entre Governo e povo. E a disposição, embora ainda ténue, de uma Europa que, esgotada no presente, não descreu totalmente no futuro, pode estimular uma autonomia económica como garantia de uma nova moral.

As leis do "mercado" estão a ser sujeitas a reflexões profundas.
Os perigos advenientes da inexistência de regulação são vários: além de terem concebido uma casta parasitária, que entre si divide benesses e poderes, impeliram as suas próprias estruturas para um beco que só pode encontrar saída numa derrocada de proporções imprevisíveis.

O mundo actual semelha-se ao mito de Sísifo.
Anda de baixo para cima e de cima para baixo, infinitamente sem encontrar o recto caminho, e carregado pelo peso de um rochedo que, mais tarde ou mais cedo, irá rolar pela encosta.
Há muitos anos que não dispomos de dirigentes à altura das mudanças do mundo.
Guiam-se, todos, à Direita e à Esquerda, pela mesma cartilha.
Removeram a ideologia e as convicções do calendário político.

Ao contrário de Sísifo, que recusa, obstinadamente, a derrota, eles submeteram-se às consequências desta união no vazio.
Que valores vão defender os participantes na Res Publica?
Os valores e os princípios que, ao longo dos anos, o PS foi depredando, até os destruir?
Eles aceitaram, sem o mínimo rebuço e sem o menor esforço contrário, a imposição de leis inflexíveis.

A economia, no pior sentido da expressão, impôs o quadro:
 - despedimentos para se obter a "reestruturação" de empresas falidas ou em dificuldades;
- ausência total do Estado nos sectores em que o "privado" pode actuar;
- estímulos materiais e largas benesses aos "gestores" que se não desviem do diktat;
- ... e a filosofia das multinacionais, "deslocando-se" para os países onde a mão-de-obra é mais barata, criou um outro tipo de servos, sendo a escravidão a mesma.

A crise actual do capitalismo (que sempre soube renovar-se e renascer das aparentes cinzas) faz parte do sistema que criou. Não há, ainda, a "unidade perdida" porque o capitalismo reencontra-se permanentemente.
Porém, os mais lúcidos economistas, e os grandes comentadores políticos são unânimes em considerar que, entre separação e comunhão, digamos assim, os problemas vão agravar-se, até níveis inimagináveis.

Fala-se, inclusive, numa crise mais atroz do que a de 1929.
As convulsões sociais aproximam-se.
A hegemonia norte-americana sofre sobressaltos.
E os recentes acontecimentos no Cáucaso, com a Rússia a demonstrar a eficácia das suas armas e as astúcias da sua geopolítica, permite estabelecer a consciência dos perigos que nos rondam. Creio que a reabilitação do Estado, como autoridade e relação social, vai estar na ordem do dia.

(Baptista-Bastos, in Jornal de Negócios, 12 de Setembro de 2008)
(Foto de Pedro David Mendes)

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Liberdade - ou a Força de Dizer Não (*)

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

(*) De "Trova do Vento que Passa" (Manuel Alegre, Portugal)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Terramoto de Longa Duração




"Um terramoto está a assolar a Europa.
Não é detectável nos sismógrafos convencionais, porque tem um tempo de desenvolvimento atípico.
Não ocorre em segundos, se não em anos ou talvez décadas.
Consiste na convulsão social e política que vai decorrer da destruição progressiva do chamado modelo social europeu - uma forma de capitalismo muito diferente da que domina os EUA -, assente:
- na combinação virtuosa entre elevados níveis de produtividade e elevados níveis de protecção social, entre uma burguesia comedidamente rica e uma classe média comedidamente média ou remediada;
- na eficácia de serviços públicos universais;
- na consagração de um direito ao trabalho que, por reconhecer a vulnerabilidade do trabalhador individual frente ao patrão, confere níveis de protecção de direitos superiores aos que são típicos no Direito Civil;
- no acolhimento de emigrantes baseado no reconhecimento da sua contribuição para o desenvolvimento europeu e das suas aspirações à plena cidadania com respeito pelas diferenças culturais.

A destruição deste modelo é crescentemente comandada pelas instituições da União Europeia e pelas orientações da OCDE.



Três exemplos recentes e elucidativos.
- A directiva europeia que permite o alargamento da semana de trabalho até às 65 horas.
- A chamada directiva de retorno, que permite a detenção de imigrantes indocumentados até 18 meses, incluindo crianças, o que virtualmente cria o delito de imigração.
- As alterações ao Código do Trabalho em vias de serem aprovadas no nosso país, cujos principais objectivos são:
» baixar os níveis de protecção ao trabalhador consagrados no Direito do Trabalho, já de si baixos pelo nível de violação consentida;
» transformar o tempo de trabalho num banco de horas gerido segundo as conveniências da produção, por maiores que sejam as inconveniências causadas ao trabalhador e à sua família, com o objectivo de eliminar o pagamento das horas extraordinárias;
» desarticular o movimento sindical através da possibilidade da adesão individual às convenções colectivas por parte de trabalhadores não sindicalizados, o que abre as portas a todo o sindicalismo dependente e de conveniência.

Há em comum nestas medidas dois factos que escapam por agora à opinião pública:
- O primeiro é que, ao contrário do que aconteceu na legislação europeia anterior, a actual visa harmonizar por baixo, transformando os países mais repressivos em exemplos a seguir.
- O segundo é fazer convergir o modelo capitalista europeu com o norte-americano.
A miragem das elites tecno-políticas europeias - muitas delas formadas em universidades norte-americanas - é que a Europa só poderá competir globalmente com os EUA na medida em que se aproximar do modelo de capitalismo que garantiu a hegemonia mundial deste país durante o século XX.
Trata-se de uma miragem, porque concebe como causas dessa hegemonia o que os melhores economistas e cientistas sociais dos EUA concebem hoje como causas do seu declínio, fortemente acentuado nas duas últimas décadas.



A transformação do trabalhador num mero factor de produção e a transformação do imigrante em criminoso ou cidadão-fachada, esvaziado de toda a sua identidade cultural, são as duas fracturas tectónicas onde está a ser gerado o terramoto social e político que vai assolar a Europa nas próximas décadas.
Vão surgir novas formas de protesto social desconhecidas no século XX.
A vulnerabilidade do Estado será visível em muitas delas, tal como aconteceu com a greve de camionistas, vulnerabilidade reconhecida por um primeiro-ministro cuja eventual ignorância da história contemporânea foi compensada pela intuição política: foi a greve de camionistas que precipitou a queda do governo de Salvador Allende.

A quem beneficiará o fim de um sindicalismo independente e o agravamento caótico do protesto social?
Exclusivamente ao Clube dos Bilionários, os 1.125 indivíduos cuja riqueza é igual ao produto interno bruto dos países onde vive 59% da população mundial."

(Boaventura de Sousa Santos - in Visão n.º 800, de 3 de Julho de 2008)